segunda-feira, 16 de novembro de 2009

AH! POR FAVOR, DIZ...

Diz que você me ama, vai, diz.

Diz que quem ama o feio bonito lhe parece.

Diz que Deus ajuda quem madruga, diz. Diz e prova, vai.

Diz que não é possível que o medíocre leve vantagem sobre o mais competente, que o esperto derrote o aplicado.

Diz que você nunca foi assaltado, nem seu vizinho nem ninguém de sua parentela.

Diz que os pobres herdarão o reino dos céus.

Diz que os juros vão cair.

Diz que o FMI vai perdoar as nossas dívidas como nós perdoamos os nossos devedores.

Diz que concorda com Capistrano de Abreu que a constituição deveria ter um único parágrafo: “Todo brasileiro deve ter vergonha na cara”.

Diz que essa política de cotas para negros é um equívoco, atitude assistencialista, é cópia dos Estados Unidos, que lá não deu certo e que aqui a questão racial é bem diferente, e que vão acabar fazendo com que todo negro com diploma na mão ou que frenquenta universidade parecerá ter conseguido isto por caridade e não por competência.

Diz que o que tem que ser tem muita força, que o bem, pelo menos, às vezes, vence o mal.

Diz que nenhum amigo o traiu.

Diz que nenhum sócio lhe deu desfalque.

Diz que já cansou desse papo de que todas as coisas se equivalem, que é arte qualquer coisa que alguém chama de arte.

Diz que nunca perdeu dinheiro na compra de um imóvel, de um terreno ou num investimento que um amigo aconselhou.

Diz que anda na rua despreocupada, que larga a bolsa na cadeira ou em cima do balcão.

Diz que está cada vez mais convencido de que a Justiça tarda, mas não falha.

Diz que passa pela polícia sem sobressalto, que quando vê os fardados pararem carros de jovens na estrada não pensa que estes estão sendo achacados.

Diz que as estradas não têm buracos, que estão todas luminosamente sinalizadas e é uma delícia deslizar por elas.

Diz que não é verdade, vai, diz que não é possível Bush ser reeleito.

Diz que não está arrependido do voto que deu na última eleição, alíás, diz que nunca se arrependeu, que sempre votou certo.

Diz que dorme tranqüilo quando seus filhos estão na rua e nem esquenta a cabeça quando não telefonam.

Diz que não tem saudades dos anos 50 nem da era JK, que de lá pra cá o país melhorou muito.

Diz que leu Ulisses inteiro com o maior prazer.

Diz que é melhor dar que receber.

Diz que ele sempre realizou suas fantasias e que nunca se esqueceu do aniversário de casamento.

Diz que Israel vai procurar outro caminho para negociar a paz com os palestinos, diz.

Diz que não estão ocorrendo mais rebeliões nos presídios, que não estão cortando cabeça dos companheiros e dependurando-os pelos pés nas paredes.

Diz que não vai haver mais rebeliões na Febem e similares.

Diz que o MST vai parar com essas invasões desastradas e desastrosas.

Diz que ficar discutindo se a culpa é do usuário ou do traficante é um desvio e que a questão tem que ser vista no seu conjunto.

Diz que quem consome drogas, seja em que escala for, está financiando a bala que vai matá-lo ou a um dos seus.

Diz que as grandes potências vão deixar de ser hipócritas, que os Estados Unidos vão, finalmente, assinar o protocolo de Kyoto para diminuir a poluição.

Diz que vamos sair dessa fase ruim, que já dura uns vinte anos, e que haverá crescimento e emprego finalmente.

Diz que não importa ganhar, que o importante é competir.

Diz que ordem é progresso.

Diz que quem espera sempre alcança.

Diz que o Brasil é o país do futuro. Ou melhor, do presente.



Affonso Romano de Sant´Anna

Censuras Escondidas

Desculpe, não vendar os olhos
Nem vender o meu silêncio
Uma vontade louca
De dizer tudo que penso
Mas a voz não alcança
Perdi a inocência
E a paciência não aguenta mais

Cansei de tantos mitos
A justiça nunca vi chegar
O que contar para os netos
Desse mundo de máscaras

Não espere nas calçadas
A multidão vai pelas ruas
Sem censuras escondidas
Não tranque as saídas

Eu quero gritar
Chega de blá blá blá
Tanto papo furado
O que deu errado não dá pra voltar
Mas o amanhã ainda posso mudar

Engula teu discurso
De teorias infundáveis
Não vai me convencer
Que são robôs alienáveis
Não cruzei os braços
Não pinto a cara de palhaço
Só quero a liberdade
Pra falar minha verdade


Autora: Larianne S. Holanda

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Tempo de delicadeza


Tempo de delicadeza

Affonso Romano de Sant'Anna


Sei que as pessoas estão pulando na jugular umas das outras.

Sei que viver está cada vez mais dificultoso.

Mas talvez por isto mesmo ou talvez devido a esse setembro azulzinho, a essa primavera que vem aí, o fato é que o tema da delicadeza começou a se infiltrar, digamos, delicadamente nesta crônica, varando os tiroteios, os seqüestros, as palavras ásperas e os gestos grosseiros que ocorrem nos cruzamentos da televisão ou do cinema com a própria vida.

Talvez devesse lançar um manifesto pela delicadeza. Drummond dizia: "Sejamos pornográficos, docemente pornográficos". Parece que aceitaram exageradamente seu convite, e a coisa acabou em "grosseiramente pornográficos". Por isto, é necessário reverter poeticamente a situação e com Vinicius de Moraes ou Rubem Braga dizer em tom de elegia ipanemense:

Meus amigos, meus irmãos, sejamos delicados, urgentemente delicados. Com a delicadeza de São Francisco, se pudermos. Com a delicadeza rija de Gandhi, se quisermos.

Vejam o nosso sedutor e exemplar Vinicius, que há 20 anos nos deixou, delicadamente. Era um profissional da delicadeza. Naquela sua pungente "Elegia ao primeiro amigo", nos dizia:

Mato com delicadeza. Faço chorar delicadamente

E me deleito. Inventei o carinho dos pés; minha alma

Áspera de menino de ilha pousa com delicadeza sobre um corpo de adúltera.

Na verdade, sou um homem de muitas mulheres, e com todas delicado e atento.

Se me entediam, abandono-as delicadamente, desprendendo-me delas com uma doçura de água.

Se as quero, sou delicadíssimo; tudo em mim

Desprende esse fluido que as envolve de maneira irremissível

Sou um meigo energúmeno. Até hoje só bati numa mulher

Mas com singular delicadeza. Não sou bom

Nem mau: sou delicado. Preciso ser delicado

Porque dentro de mim mora um ser feroz e fratricida

Como um lobo.

Está aí: porque somos ferozes precisamos ser delicados. Os que não puderem ser puramente delicados, que o sejam ferozmente delicados. Lembram-se de Rimbaud? Ele dizia: "Por delicadeza, eu perdi minha vida".

Há pessoas que perdem lugar na fila, por delicadeza. Outras, até o emprego. Há as que perdem o amor por amorosa delicadeza. Sim, há casos de pessoas que até perderam a vida, por pura delicadeza.

Confesso que, buscando programas de televisão para escapar da opressão cotidiana, volta e meia acabo dando em filmes ingleses do século passado. Mais que as verdes paisagens, que o elegante guarda-roupa, fico ali é escutando palavras educadíssimas e gestos elegantemente nobres. Não é que entre as personagens não haja as pérfidas, as perversas. Mas os ingleses têm uma maneira tão suave, tão fina de ser cruéis, que parece um privilégio sofrer nas mãos deles.

A delicadeza não é só uma categoria ética. Alguém deveria lançar um manifesto apregoando que a delicadeza é uma categoria estética.

Ah, quem nos dera a delicadeza pueril de algumas árias de Mozart. A delicadeza luminosa dos quadros dos pintores flamengos, de um Vermeer, por exemplo. A delicadeza repousante das garrafas nas naturezas-mortas de Morandi. Na verdade, carecemos da delicadeza dos adágios.

Sei que alguém vai dizer que com delicadeza não se tira um MST - com sua foice e fúria - dos prédios ocupados. Mas quem poderá negar que o poder tem sido igualmente indelicado com os pobres desse país há 500 anos?

Penso nos grandes delicados da história. Deveriam começar a fazer filmes, encenar peças sobre os memoráveis delicados. Vejam o Marechal Rondon. Militar e, no entanto, como se fora um místico oriental, cunhou aquela expressão que pautou o seu contato com os índios brasileiros: "Morrer se preciso for, matar nunca".

Sei que vão dizer: a burocracia, o trânsito, os salários, a polícia, as injustiças, a corrupção e o governo, não nos deixam ser delicados.

- E eu não sei?

Mas de novo vos digo: sejamos delicados. E se necessário for, cruelmente delicados.