sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Tempo de delicadeza


Tempo de delicadeza

Affonso Romano de Sant'Anna


Sei que as pessoas estão pulando na jugular umas das outras.

Sei que viver está cada vez mais dificultoso.

Mas talvez por isto mesmo ou talvez devido a esse setembro azulzinho, a essa primavera que vem aí, o fato é que o tema da delicadeza começou a se infiltrar, digamos, delicadamente nesta crônica, varando os tiroteios, os seqüestros, as palavras ásperas e os gestos grosseiros que ocorrem nos cruzamentos da televisão ou do cinema com a própria vida.

Talvez devesse lançar um manifesto pela delicadeza. Drummond dizia: "Sejamos pornográficos, docemente pornográficos". Parece que aceitaram exageradamente seu convite, e a coisa acabou em "grosseiramente pornográficos". Por isto, é necessário reverter poeticamente a situação e com Vinicius de Moraes ou Rubem Braga dizer em tom de elegia ipanemense:

Meus amigos, meus irmãos, sejamos delicados, urgentemente delicados. Com a delicadeza de São Francisco, se pudermos. Com a delicadeza rija de Gandhi, se quisermos.

Vejam o nosso sedutor e exemplar Vinicius, que há 20 anos nos deixou, delicadamente. Era um profissional da delicadeza. Naquela sua pungente "Elegia ao primeiro amigo", nos dizia:

Mato com delicadeza. Faço chorar delicadamente

E me deleito. Inventei o carinho dos pés; minha alma

Áspera de menino de ilha pousa com delicadeza sobre um corpo de adúltera.

Na verdade, sou um homem de muitas mulheres, e com todas delicado e atento.

Se me entediam, abandono-as delicadamente, desprendendo-me delas com uma doçura de água.

Se as quero, sou delicadíssimo; tudo em mim

Desprende esse fluido que as envolve de maneira irremissível

Sou um meigo energúmeno. Até hoje só bati numa mulher

Mas com singular delicadeza. Não sou bom

Nem mau: sou delicado. Preciso ser delicado

Porque dentro de mim mora um ser feroz e fratricida

Como um lobo.

Está aí: porque somos ferozes precisamos ser delicados. Os que não puderem ser puramente delicados, que o sejam ferozmente delicados. Lembram-se de Rimbaud? Ele dizia: "Por delicadeza, eu perdi minha vida".

Há pessoas que perdem lugar na fila, por delicadeza. Outras, até o emprego. Há as que perdem o amor por amorosa delicadeza. Sim, há casos de pessoas que até perderam a vida, por pura delicadeza.

Confesso que, buscando programas de televisão para escapar da opressão cotidiana, volta e meia acabo dando em filmes ingleses do século passado. Mais que as verdes paisagens, que o elegante guarda-roupa, fico ali é escutando palavras educadíssimas e gestos elegantemente nobres. Não é que entre as personagens não haja as pérfidas, as perversas. Mas os ingleses têm uma maneira tão suave, tão fina de ser cruéis, que parece um privilégio sofrer nas mãos deles.

A delicadeza não é só uma categoria ética. Alguém deveria lançar um manifesto apregoando que a delicadeza é uma categoria estética.

Ah, quem nos dera a delicadeza pueril de algumas árias de Mozart. A delicadeza luminosa dos quadros dos pintores flamengos, de um Vermeer, por exemplo. A delicadeza repousante das garrafas nas naturezas-mortas de Morandi. Na verdade, carecemos da delicadeza dos adágios.

Sei que alguém vai dizer que com delicadeza não se tira um MST - com sua foice e fúria - dos prédios ocupados. Mas quem poderá negar que o poder tem sido igualmente indelicado com os pobres desse país há 500 anos?

Penso nos grandes delicados da história. Deveriam começar a fazer filmes, encenar peças sobre os memoráveis delicados. Vejam o Marechal Rondon. Militar e, no entanto, como se fora um místico oriental, cunhou aquela expressão que pautou o seu contato com os índios brasileiros: "Morrer se preciso for, matar nunca".

Sei que vão dizer: a burocracia, o trânsito, os salários, a polícia, as injustiças, a corrupção e o governo, não nos deixam ser delicados.

- E eu não sei?

Mas de novo vos digo: sejamos delicados. E se necessário for, cruelmente delicados.

2 comentários:

  1. "Meus amigos, meus irmãos, sejamos delicados, urgentemente delicados. Com a delicadeza de São Francisco, se pudermos. Com a delicadeza rija de Gandhi, se quisermos."

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  2. Sabia que tinha algo errado, meu comentário sumiu ¬¬' faço outro, tudo bem!
    Minha mãe gostou tanto daquele texto do drops que quiz ler todos, pediu pra eu salvar e mandar pro email dela pra ela mandar pras pessoas =D
    Esse é ótimo também, já ficou redundante eu elogiando sua seleção de textos o.o

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